sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Resumo da mesa “A Cidade como Personagem: Cachoeira em ‘Um Defeito de Cor’” – Ana Maria Gonçalves

foto: Vinícius Xavier

A escritora mineira Ana Maria Gonçalves contou a sua jornada de pesquisas e viagens durante a produção da obra Um Defeito de Cor, em que resgata a história dos africanos na Bahia e da religiosidade, em especial a Jeje, acompanhada do curador Aurélio Schommer.

As estantes da mãe eram o desafio para a menina Ana, que perdeu o interesse pela literatura infantil muito cedo. Herdara o interesse pela leitura da mãe, que tinha muitos livros e era uma leitora voraz. Para melhor controlar o conteúdo que Ana lia, a mãe organizou a estante de modo que a menina alcançasse apenas aquilo que tinha idade para ler.

Seu primeiro livro adulto, “roubado” do alto da estante em um momento de distração da mãe, foi o livro Capitães de Areia, de Jorge Amado, através do qual ela conheceu as crianças de rua. Mais de 20 anos depois, leu outro livro de Jorge Amando, que a fez tomar a decisão de vir para a Bahia escrever Um Defeito de Cor. Ana Maria vendeu tudo o que tinha e foi morar em Itaparica apenas com a roupa do corpo. “Eu não teria conseguido escrever o lido se eu não tivesse vindo para cá”, contou.

Ana observou os lugares em seus detalhes, especialmente os prédios, que eram lugares que sua personagem veria, caso existisse. As ruas de Cachoeira fazem parte dessa história, e Ana leu um trecho em que a sua personagem chega à cidade na época da Festa da Boa Morte. A jovem é uma africana trazida para o Brasil como escrava, e seu olhar sobre as coisas e as pessoas é o de uma estrangeira.

“Eu não tinha a menor ideia de como era escrever um livro, e só depois dele eu vi o que buscava, que era a minha história: um resgate do que eu tinha de negra e estava dentro de mim”, contou. Ana teve essa certeza depois de partir para os Estados Unidos, onde mora atualmente.

O tom de pele no Brasil é múltiplo, e assim são as denominações que se recebe de acordo com esses tons. Pode-se ser “moreninha” ou negra, de acordo com a intensidade da cor. Nos Estados Unidos, Ana se sentiu negra porque era tratada como tal, inclusive pelas pessoas negras daquele país, que não faziam esse tipo de distinção. “A primeira vez que eu me vi negra foi no Free Jazz Festival, em que senhoras negras me chamaram de sister [irmã]”. Nesse momento, a escritora entendeu o porquê de ter escrito o livro e quem ela era afinal.

A mineira explicou que, para escrever o livro, teria que fazer o que chamou de “mapas afetivos”, onde os acontecimentos que ela narrou aconteceram, para que pudesse entender os locais e os momentos históricos de que falava. Para isso, utilizava anúncios de jornais do século XIX, onde havia descrições dos sinais corporais de “negros fugidos” para definir as etnias a que pertenciam. A narrativa escolhida foi a de terceira pessoa, tomando por base a narração usada pela avó, quando contava histórias.

Um dos trechos da obra que Ana Maria mais quis terminar foi o da viagem no navio negreiro. A escritora “se transportou para a pele da personagem”, indo com ela para dentro do navio.

Ana teve a ajuda da mãe para escrever o livro. “A minha mãe leu as 19 edições do meu livro, página a página, e a sintonia melhorou com o tempo”. A sintonia da mãe com a história era tal que a autora já ouvia os comentários da mãe enquanto produzia.

Um Defeito de Cor desmistifica vários pontos da cultura afrobrasileira. Um deles é o mito da nação Jeje: a palavra jeje, em si, significa “estrangeiro”, assim, a nação Jeje não era uma nação. “Este é um livro que fala sobre maternidade, orfandade e a história do negro vindo da áfrica. Depois de perder sua mãe e seu local inicial, ele sempre será estrangeiro. Não conseguirá achar o seu lugar depois”, reforça a autora.

A personagem criada por Ana era politeísta, e Schommer quis saber como ela se envolveu com os muçulmanos e acabou participando da Revolta dos Malês. A autora explicou que o próprio candomblé, enquanto sincretismo religioso, é uma explicação para esse comportamento: “a luta pela liberdade possibilita essa união”, completou. A jovem escrava acendia velas para todo mundo, e isso fazia com que ela perdesse a identidade.

A segregação fez com que outras realidades mudassem a exemplo dos estadunidenses: “eles foram segregados e tiveram que aprender a viver assim, criando mecanismos de manter o orgulho negro e a irmandade”, comentou. O maior exemplo disso, segundo Ana, é o próprio presidente Barack Obama, que foi beneficiário do sistema de cotas, sem o qual ele jamais teria chegado à presidência.

A plateia perguntou se a política de cotas não e uma maneira de segregar os negros, e Ana aconselhou as pessoas a tomarem cuidado com esse tipo de afirmação, porque pode ser direcionada para que os negros se sintam humilhados. “Não acho que isso seja uma vergonha, porque não é dado de graça. O negro que conseguiu terminar o ensino médio já é um vencedor”, explicou.

Emocionada, Ana encerra contando que Um Defeito de Cor foi o primeiro livro que seu avô leu. “Minha avó tirava página por página para que meu avô lesse, o livro foi todo desmontado e ele leu sem ficar com as mãos inchadas do diabetes”.


Aline Cavalcante

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